quarta-feira, agosto 18, 2010

Mal nos conhecemos

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!.

Alexandre O'Neill

Eu vou!

terça-feira, agosto 17, 2010

5 minutos de blog

O altruísmo.

O altruísmo, para começar, tende a ser endogrupal, mas conserva um aspecto individualista que a meu ver se revela fundamentalmente no voluntarismo.
No âmbito do grupo, o objecto da participação (invariavelmente) termina em benefício próprio, mas, também, e conscientemente, e primordialmente, em benefício do grupo, com a intenção de melhorar questões que a este se reservam, elevando a sua capacidade, prestígio, consideração, dimensão, ou mesmo acesso a recursos, indirectamente somos beneficiados por a este pertencer.
A dinâmica de grupo, sendo o colectivo composto por vários indivíduos, pode ver-se mermada devido a questões como o nepotismo corrupto, cobardia, soberba, inveja, incapacidade, frustrações pessoais ou simples ambição. Neste caso, quando estas formas de inter-relação se impõem ao ideal conjunto, quando se legitimam por comunhão daqueles que ocupam roles de proeminência, aparece a individuação, o abandono e/ou a cisão, criando-se um novo grupo ou inserindo-se noutros que careçam dessas desviações ou que, incorporando-as, permitam uma identidade social positiva de maior amplitude.
Também no seio do grupo, sobretudo numa sociedade de perfil colectivista como a nossa, se encontram os, por mim denominados, “ratos”. Estes são aqueles que esperam do grupo, as oportunidades por este criadas, para alcançar através das mesmas o que não foram capazes de alcançar na coerência com os seus dissimulados ideais, as condições que supram as mais variadas lacunas que equivocadamente, ou não, subsistem na sua personalidade. Não obstante, o altruísmo endogrupal neste caso não existe, sim a assunção informativa, mas, excepcionalmente, não a normativa, uma vez que não se desencadeiam acções quando não se perspectivam compensações. Em psicologia, este tipo de perfil conhece-se como advindo de certas patologias, mesmo deformidades neuroanatómicas ou morfológicas.
No caso concreto do grupo ao qual pertenço, por condição, estas últimas não ousam predominar, antes pelo contrário, basta lembrar Homens como Bento Gonçalves, Dias Lourenço, Dias Coelho, Soeiro, e tantos outros que para mencionar não bastaria o virtual espaço deste blog. O ideal do meu partido é maior que o de qualquer homem, que o de qualquer doença, que o de qualquer dogma.
Assim, atribuída que está a vertente política à maioria dos grupos, se não a todos, para evitar situações como as descritas mais acima, sabemos que a concentração de elementos nocivos pode a partida ser limitada com base nos procedimentos estabelecidos que dão lugar à aceitação de novos integrantes, ainda que, dificilmente se detectem e menos se reúnam argumentos para afastar aqueles que no percurso se corromperam, elementos que dificultam, não chegando contudo a degradar, o progresso e o crescimento do colectivo. Contrariedade que promove, de novo, a individuação. A resposta, neste caso, apela à coerência individual com os valores que estiveram na base da decisão primeira de escolher determinado grupo, que formaram determinada personalidade, e, ainda pesando o comportamento abjecto de alguns semelhantes, a análise toma outro cariz, reforçando a identificação com a maioria endogrupal, terminando essa por fortalecer o altruísmo e relegando para o limbo da segregação aqueles que com a sua actitudinal deformação infectam o ambiente.
Porém existe também a necessidade de compartir os recursos. Nessa situação, a diferença entre um grupo com características standard e outro de elíte, é que no actual paradigma, os recursos do último sobram para todos elementos, favorecendo assim a competitividade e premiando a dominancia sem olhar a meios, sendo este evitado pelos que aproveitam outras prácticas camuflando a sua vontade dentro de um entorno solidário, não obrigatóriamente carecido.
Como conclusão, o Homem é um ser social, necessita o grupo, e, como meta essencial reproduzir-se. O altruismo é, pois, a forma que melhores resultados prova alcançar no sentido da transformação do futuro no qual crescerão os nossos genes, viveremos nós e, a sociedade da qual fazemos parte.

segunda-feira, agosto 16, 2010

Humanidade, tempo, espaço e colectivismo

"O homem culto é aquele que tem consciência do seu lugar no universo e na sociedade, reconhece a dignidade inerente a qualquer indivíduo e coloca como seu fim supremo o aperfeiçoamento interior."
Bento de Jesús Caraça

sábado, agosto 14, 2010

O silêncio

O silêncio.

O texto que segue toma como base a imposição do silêncio durante a ditadura fascista que marcou quarenta e oito anos da vida de Portugal e dos Portugueses, no intuito de expor uma pseudo-tese que explique e denuncie a depressão que actualmente se verifica no âmbito social, e, como conclusão, encontrar hipotéticas formas para a alterar:

Vinte e poucos anos depois da transição efectiva de um sistema feudal a outro prenunciado democrático - um avanço civilizacional incontestável -, estabeleceu-se no nosso país um tipo de ditadura extraordinariamente repressiva, fundamentada no nacional-corporativismo alimentado, também, pela dimensão de potência colonizadora que Portugal detinha à época. Durante esse período, fundamentalmente personificado por salazar (o botas) e mais tarde por marcelo caetano, aparte de não existirem quaisquer garantias sociais que evitassem a renúncia do povo a exibir critério próprio, proibidas que estavam as reuniões populares, a lei determinava não haver lugar a opinião contrária àquela segundo a qual se regia a vida dos Portugueses e que conservava desígnios de uma oligarquia.

Tentando desde a neurociência enunciar alguns possíveis transtornos advindos desse regime, transtornos que podem hoje preconizar a atitude da população em geral, podemos atender a diferentes factos, sendo o primeiro deles a localização do sistema de processamento de linguagem no cérebro humano, córtex frontal, área de broca. Compartindo disposição estão situadas importantes funções de coordenação – que para o caso não apresentam relevância – e, motivação e conduta, tomando estas papel central nas conclusões que pretendo alcançar.
Assumindo que dialogar permite a afirmação da personalidade do indivíduo, que o mesmo evolua no contraste com outros pensamentos, e que, ao contrário, através do condicionamento instrumental; operante, se podem cominar alterações psicológicas como a depressão e assim a indefensão aprendida e que estas, durante um processo tão alargado no tempo quanto a mencionada ditadura e sem tratamento (antes pelo contrário), puderam influenciar ontogénicamente as características do aporte filogénico na reprodução, podemos identificar o motivo da apatia que se constata socialmente.

Porém, sem deixar de contemplar a transformação que a liberdade conquistada com o 25 de Abril proporcionou com relação à dimensão da exposição cognitiva, ao seu contributo no processo evolutivo, podemos assegurar que, segundo a teoria da selecção natural, as gerações que agora se reproduzem já não transmitirão geneticamente consequências desse tipo de fascismo e, ainda que não seja a metamorfose do mesmo o elemento de estudo, no artigo anterior dá-se conta da estratégia actual de dita política.

Assim, aceitamos então que a possibilidade de escolha ou afirmação do indivíduo é factor necessário para a felicidade. Contudo, o processo de consciencialização que permita tornar efectivo, real, o uso desse direito, continua a ser dificultado pela reacção, pelas forças políticas da direita, e será contra essas, sem dúvida, que a luta deve ser travada. Sustentando esta opinião, mesmo atendendo ao resultado de investigações que indica que, à semelhança do que propugna o Marxismo, o processamento de informação se vê melhorado quando o Homem elucubra fortalecido pelo colectivo (exemplo).

Constituindo exemplo suficiente a propaganda que aqui encontramos do quão bombardeada resulta a democracia nos dias que correm, revela-se assim inviável, mesmo que interiorizada positivamente, que a revolução de 1974 sirva como "priming" para evitar que a tentativa de estereotipar o Socialismo surta o efeito desejado por aqueles que, por exemplo, promovem o concentracionismo, elitizando o acesso a serviços como a justiça a educação ou a medicina, colocando-se assim como classe dominante.

Concluindo: ainda tendo sido sacrificada pelos mesmos que a louvaram, a vaca galega que debelou o ataque de uns lobos que habitavam a serra onde pastava, quando perdida com a sua cria durante 12 dias, depois de aprender a lutar para se defender deixou de obedecer ao pastor como o faziam as suas semelhantes domesticadas (motivo da sua morte). Utilizando como parábola, e salvando claramente as distancias, esta fábula que encontrei no livro "A viagem do elefante" de José Saramago, lembra que são muitos aqueles que hoje continuam a fazer o que de melhor aprenderam, lutar, e sim, claro que também para estes a ontogénia tem os seus efeitos, ainda que no seu caso, por não acicatar a depressão, comporte o potencial necessário para levar a cabo a ansiada mudança (transformação aferível de paradigma), que sobrevirá, mais cedo que tarde.

sábado, agosto 07, 2010

O Herói anda por dentro

Hoje, ao ler um artigo de um blog muito interessante, que mencionava uma notícia sobre o super-homem, decidi escrever sobre o assunto que me tem vindo a martelar há umas semanas: a política e os comic. Porém, não vou entrar tão a fundo na matéria que me leve a viajar por sendas que já trilhei e que, como proposta deste texto, resultariam ainda mais aborrecedoras que o mesmo.
Personagem que me interessa desde o ponto de vista (de momento) académico, o batman, poderia justificar quatro ou cinco páginas de um livro, ainda que, não por evitá-lo deixarei de referir a sua traiçoeira adição às endorfinas, a esse ópio endógeno que se produz na tentativa orgânica de alcançar o equilíbrio homeostático perdido no reviver de experiencias semelhantes a outras traumáticas (como quando, apontando-lhe com um revólver, assassinam seus pais) ou, em situações inusitadas, sempre negativas. Enfim, à justificação da sua pseudo-altruísta inquietação pela defesa da população, desde uma clara eleição de classe... Burguesa, egocentricamente hedonista.
Nesse sentido, e aproveitando a onda que se conforma, na espontânea tentativa de análise sobre uma tão proeminente figura desse universo aos quadradinhos, onde muitos de nós vivemos momentos da nossa vida, fundamentalmente na etapa de crescimento, continuarei, procurando contribuir para uma interpretação distinta de outra personagem com estatuto superior, o super-homem.

O super-homem, “Superman” para evitar confusões com outros tipos de anticristo, abandonado pelos seus pais, quando estes decidem perecer por não se legitimarem sem feudo e incapazes, como reaccionários, de afrontar o desafio de partilhar e integrarem novas e desconhecidas realidades; vítima da cobardia dos progenitores, cai na terra (“América”, enorme, onde qualquer homem de boa fé, um bebé, um inocente, podem estar seguros), em terreno lavrado, cheio de vida potencial, que, como de forma “comum” nessas esplêndidas e generosas paragens, pertence a um só casal. Desfrutando de uma infância cómoda, abstémia, casta, alienada da mundana humanidade, e curiosa e paradoxalmente, exemplarmente abnegado humilde limpa-botas dos filhos dos vulgares abastados homens que abundam nesse paraíso, consegue compensar com trabalho os escassos recursos que os seus anciãos tutores dispunham para a sua educação, graduando-se ("doutorando-se", em Portugal), em jornalismo. Meritório esforço (ainda que de quem não sua), mas, básica e tácita apologia de um paradigma de submissão e competição, de uma assumida clivagem classista capitalista ultra-ortodoxa, onde a emancipação se outorga em “canudos”.
Recapitulando, nesta inicial aproximação ao “SM” – abreviando como se estila actualmente -, começo por concluir que segundo os guionistas e a censura norte-americana, o abandono de menores deve ser legalizado, e quem diz abandono diz venda, sempre que os pais não tenham possibilidades de manutenção do menor. Conclúo também que, cair na América, ainda que de forma aleatória, é uma sorte acompanhada de oportunidades, sempre que nos aborreguemos o suficiente.
Mais importante, para terminar este primeiro inciso, encontro uma diferença assinalável entre a aposta por um progresso sustentado “também” nas centenas de, pelas mais diversas razões, “Mitchourines*”, elemento central da intelectualidade, e outra forma, a qual, reiterando e defendendo a prevalência do estabelecido, cuidando a marisma, apenas reconhece idoneidade ou razão fundamentada, ou mesmo pondera somente a argumentação; atribui valor, aos formados segundo seculares critérios programáticos redutores.

Noutros âmbitos, contra a emancipação do indivíduo, existe o Hulk. Para nos fixar num mundo sombrio, solitário, insolidário, frente a um copo que depois de vazio tentamos romper com o poder da mente e que por tal logro vazamos cada vez com maior diligência, estão os X-men, com o seu chefe numa cadeira de rodas, mas, claro, estes seriam só o veludo.

Voltando ao nosso, deles, homem, e para não nos alargarmos muito mais, uma constatação simples é a de que o “SM” foi mesmo criado como elemento estrutural, e estructurante, da estratégia de manipulação imperialista. Se nos detivermos em aspectos paralelos, perceberemos que, este é o único super-herói que necessita disfarçar-se para viver entre a população - isto numa das maiores metrópoles do mundo -, que começa por querer identificar-se com o entorno, facto que permite extrapolar que o comportamento de um ser especial (da população americana que pretende imitar, tornando-a extraordinária; dos valores americanos) é temeroso na sua relação com o semelhante (distante), dócil com o patrão (cash), austero aos sentimentos (privilégio do homem); deve ser voluntarioso e humilde para com os seus inferiores, inferiores (como para decidir quando como e onde levar a cabo invasões solidárias ou defesa de conflitos previamente criados); que ainda sendo todo-poderoso não deve submeter (ou mais bem, não mostra submeter) mais que os vilões por ele ajuizados (possuidores de arsenais nucleares, por exemplo), e que, tudo faz com a consciência de poder cometer erros como um humano, com as suas kriptoniticas e humanas debilidades (não existindo Haya para os soldados americanos). Em suma, olhamos para alguém que podendo dominar o mundo prefere, aparentemente, dominar-se a si (perdoando-nos a vida).

No caso do homem-aranha... sendo um cientista, é o único capaz de afirmar na sua biografia que, a interacção conscientemente respeitadora entre espécies, no seu caso e sem sequer ter esborrachado a aranha, pode ser benéfica (afinal existe sempre um vínculo filogénico). Tomando esta figura híbrida, entrando noutro ramo da sua área de formação enquanto simples humano, em diferente matéria, concretamente segundo as últimas conclusões da neurociência, a forma mais efectiva para aturdir o povo; impor o pensamento único, é mesmo bombardeá-lo com opções, tantas quantas as necessárias para o paralisar, para que este, mesmo podendo actuar não possa decidir fazê-lo. Ora, se uma das faculdades que conformam a espécie humana, no que à psicobiologia concerne, é a capacidade de decisão, ao ser impedidos de escolher entramos numa espiral depressiva. Apáticos, indiferentes, tornamo-nos – como o batman -, depressivo-dependentes ou, dependentes das substancias que o nosso corpo segrega quando nos deprimimos, votando em quem sabemos nos roubará o que puder, nos retirará os direitos outrora conquistados lutando; incapazes de assumir a responsabilidade de mudar em direcção a uma sociedade transformada (como pais de um imaginário super-homem). Enquanto isso, o mundo gira e avança, e nós com ele, sem preconizarmos a vida com que trazemos agarrada ao nascer. Permanecemos hirtos, como num prado onde a contemplação se extende até um horizonte com escritura de propriedade.

Em Portugal, mais de 45% da população sofreu psicopatologias, actualmente estão diagnosticados e medicados, aproximadamente 25% dos portugueses, um dos rácios mais altos do continente (incluindo países frios onde a população, bastante mais individualista, obtém uma taxa de suicídios extremamente elevada, sabendo que os últimos trabalhos apontam também a que não ter amigos se pode considerar tão nocivo quanto fumar. Tese esta, última, à qual me atrevo a acrescentar um factor também ecológico, o paisagístico), nada inexplicável depois de 48 anos de repressão e obscurantismo, onde a impossibilidade de eleger era imposta abruptamente, uma forma prematura do esquema de condicionamento que hoje se continua a aplicar, com alcance mais global, e que, prova o trabalho de escolas como Tavistock.

A modo de conclusão, sem ter andado por Zeus e seu pai, nem querendo que este se revele referência sequer para seu filho: Fundamental será manter acesos os alarmes anti-demagogia, evitar ver a realidade através dos quadradinhos nos quais diariamente nos tentam enclausurar o pensamento; ver com olhos de ler, para que não se imponha uma espécie de neo-linguagem transmissora de um guião escrito na vida de outros, que podia ser a nossa, internacional. Nessa luta, a dificuldade é inversamente proporcional à dimensão da “cultura integral do indivíduo”.

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* Mitchourine:

"Era uma vez...

Todas as histórias fantásticas começam assim. Mas esta que vou contar, inspirada num livro famoso de Iline, nada tem de fantasia.
Há 45 anos, numa cidadezinda de mal conhecido e longínquo país, vivia um homem que se chamava Mitchourine. Era modesto empregado da estação, incumbia-se de vigiar o relógio da gare: dar-lhe corda e acertá-lo.
Triste destino este de ver passar o tempo e os comboios numa gare sombria, aberta tanto ao vento como aos passageiros, desconfortante como todas as gares.
Ele, que fora criado no campo e se debruçara, encantado, sobre o mistério da vida das plantas; que passara dias e dias a ver florir um simples botão de macieira brava; envelhecia agora a vigiar o ponteiro das horas, sempre iguais.
No inverno, quando a neve esbatia contornos e arrasava de brancura a planície, Mitchourine encostava-se aos pilares álgidos da gare e ficava tempo esquecido a olhar um ponto distante, para além do horizonte baço, indefinível... Via talvez, em pensamento, as árvores que tanto admirava, vergadas ao peso da neve, hirtas de frio e rijas como cadáveres. E sofria por elas.
Depois, à noite, aconchegada mais a gola do casaco de trinta invernos, ia meter-se em casa, a sós com os seus livros, arranjados não se sabia como nem onde. Lia, fumava no seu cachimbo e esperava.
Até que um dia, o comboio que chegava sempre para os outros, chegou também para ele. Vendeu a casinha que fora de seus pais, juntou as poucas economias e abalou para os arredores da cidade, onde adquiriu, em pleno campo, um pequeno talhão com árvores de fruto, entre as quais passou a viver, em mísera cabana.
Realizara, enfim, o seu sonho. Era perseverante e forte de vontade como os sábios, este Mitchourine. E porque era, decidiu fazer uma coisa audaciosa: substituir as árvores quase selvagens do seu país por outras que dessem frutos belos e saborosos como as fruteiras do Ocidente.
Estas, não resistiam às temperaturas negativas do Inverno? A ciência daquele tempo não desvendara ainda os mistérios da hereditariedade? Pouco importava isso a quem confiava na inteligência e no trabalho. Mitchourine recolheu o pólen das flores da pereira beurré-royal e fecundou as flores da pereira autóctone, selvagem. Cinco pêras irmãs nasceram deste cruzamento - cinco frutos da tenacidade do ex-vigilante de relógios, o qual passou a vigiar dia a dia, ano a ano, com cuidados paternais, a fixação dos caracteres das novas fruteiras, que tomaram o seu nome.
Depois, foi mais longe na sua audácia: cruzou a maçã brava com a cereja, a sorva, a groselha - e obteve frutos bizarros, com sementes bicornes, irregulares. E nos viveiristas da cidade começaram a aparecer plantas estranhas, que não temiam os frios rigorosos, e davam frutos de polpa e de cores vivas, como que beijadas pelo sol dos trópicos.
Um ano houve em que todas as cerejeiras do Canadá morreram de frio. Todas, menos a "Mitchourine", que resistia a 40º negativos.
Como se adivinha, já então as plantas do extraordinário fruticultor corriam mundo. Ele, porém, continuava a morar na sua barraca tosca, entre viveiros.
Há sábios assim: homens que servem a humanidade e de quem a humanidade não fala...
Não obstante, Mitchourine não foi esquecido. Vinte anos mais tarde, abriu com mãos trémulas de velho um telegrama que dizia: "As experiências de culturas novas têm enorme significado. Enviai-me um relatório dos vossos trabalhos." E, no lugar da assinatura, estava escrito o nome do primeiro chefe do país.
Desde aí, Mitchourine trabalha num viveiro com muitos hectáres de tamanho, e dirige um Instituto de ciência experimental, que tem o seu nome. Na gare sombria da estação em que ele fora modesto vigilante de relógio começaram a descer centenas de estudantes, ciosos do saber e experiência do mestre...

Esta história verídica tem um conceito, como todas as histórias: só será progressivo o país que saiba encontrar os seus Mitchourine entre os filhos do campo.

Soeiro Pereira Gomes - Alhandra, Janeiro de 1943."

quarta-feira, agosto 04, 2010

-Não consigo arranjar o espelho... Antes, mesmo com algumas lâmpadas fundidas, ainda se vislumbrava; lobrigava.

domingo, agosto 01, 2010

Entram em vigor hoje os Decretos-lei 70/2010 e 72/2010, que reduzem os apoios aos portugueses com rendimentos insuficientes e aos desempregados

Com o pretexto de que a economia portuguesa está a recuperar, mas fundamentalmente com o objectivo de reduzir o défice orçamental de 9,3% para apenas 2% do PIB entre 2009 e 2013, o que corresponde a uma redução da despesa publica de 12.234,8 milhões € em quatro anos, que significa um corte muito grande, o governo, através do Decreto-Lei 77/2010, eliminou as medidas extraordinárias de apoio aos desempregados que eram para vigorar durante a crise, e que foram as seguintes: (a) Eliminação da prorrogação por mais 6 meses do subsídio social de desemprego inicial e subsequente; (b) Eliminação da redução do prazo de garantia (numero de dias de descontos para a Segurança Social) para se ter acesso ao subsídio de desemprego que era de 365 dias e que agora passou para 450 dias; (c) Eliminação da majoração de 10% do subsídio de desemprego para os desempregados com dependentes a seu cargo. Portanto, medidas todas elas que vão atingir profundamente todos os portugueses que não têm trabalho, reduzindo ainda mais os que têm direito a receber o subsídio de desemprego. E isto quando o numero de desempregados a receber subsídio de desemprego não para de diminuir. De acordo com o Ministério do Trabalho, em Fevereiro de 2010 eram 370.658, mas em Junho de 2010 já apenas 352.846, ou seja, menos 17.812.

Para além destas medidas extraordinárias que o governo tinha aprovado no inicio do ano para vigorarem até ao fim de 2010, mas que eliminou em Junho deste ano, este governo aproveitou a "embalagem" e eliminou também uma medida que não era extraordinária, que tinha sido implementada através do Decreto-Lei 245/2008, portanto muito antes das chamadas medidas extraordinárias, que era a seguinte: "Os titulares do direito a abono de família para crianças e jovens, de idade compreendida entre 6 e 16 anos durante o ano civil que estiver em curso, têm direito a receber, no mês de Setembro, além do subsídio que lhes corresponde, um montante adicional de igual quantitativo que visa compensar as despesas com encargos escolares, desde que matriculados em estabelecimento de ensino". Após a publicação do Decreto-Lei 77/2010, passaram a ter direito, não todas as famílias que recebiam abono como acontecia, mas apenas as beneficiários pertencentes ao 1º escalão do abono de família, ou seja, passaram a ter direito a este adicional de abono a receber em Setembro de cada ano apenas as famílias cujo rendimento familiar a dividir pelo numero de filhos com idade entre os 6 e 16 anos seja inferior a 209,61€/mês, o que reduziu drasticamente o numero de famílias com direito ao adicional do abono de família.

E como tudo isto já não fosse suficiente, este governo aprovou dois outros decretos – o Decreto Lei 70/2010 e 72/2010 – que entram em vigor dois meses após a sua publicação, ou seja, em 1 de Agosto de 2010, que reduzem o apoio aos portugueses com rendimentos insuficientes, portanto próximos ou mesmo no limiar da pobreza, e aos desempregados. E são esses dois decretos que entrarão em vigor no inicio de Agosto, que revelam um profunda insensibilidade social, que vamos analisar seguidamente procurando tornar claros os seus efeitos.

O DECRETO-LEI Nº 70/2010 – A alteração da chamada condição de recursos vai reduzir significativamente o direito a apoios sociais

O acesso em Portugal a muitas prestações de apoio social (abono de família, abono pré-natal, subsídio social de desemprego, complemento solidário de idoso, rendimento social de inserção, acção escolar, taxas moderadoras, comparticipações nos medicamentos, comparticipação nas despesas dos utentes de cuidados continuados, etc.), de quem não possua recursos suficientes depende de cumprir a chamada " condição de recursos", que é definida com base no rendimento "per capita" do agregado familiar.

Para reduzir o número daqueles que têm direito a esses apoios sociais o governo alterou a fórmula como se calcula o rendimento "per capita".

Até aqui só eram considerados como pertencentes ao agregado familiar aqueles em que se verificava uma relação dependência económica. Após 1 de Agosto de 2010, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 70/2010, são consideradas todas as pessoas em economia comum, ou seja, que residem no mesmo alojamento e suportem em conjunto as despesas fundamentais ou básicas, portanto muitas mais, o que fará aumentar o rendimento familiar, e quanto maior seja o rendimento familiar menos é a probabilidade de ter direito a apoios sociais.

Para além disso, até aqui o rendimento "per capita" era obtido dividindo o rendimento do agregado familiar pelo número de pessoas que o constituíam. Após 1 de Agosto de 2010, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 70/2010, já isso não acontece. O primeiro adulto "vale" 1, mas cada adulto seguinte vale apenas 0,7; e as crianças, cada uma somente 0,5.

Um exemplo, para tornar as consequências desta alteração mais claras. Imagine-se um agregado familiar cujo rendimento é de 1000€/mês, constituído por 2 adultos, em que um foi despedido, e por duas crianças. Até aqui o rendimento "per capita" do agregado familiar obtinha-se dividindo os 1000€ pelas 4 pessoas, o que dava 250€. Agora divide-se apenas por 2,7 (o 1º adulto=1; o 2º adulto =0,7; cada criança =0,5), e obtém-se já 370€, de rendimento "per capita". Para se ter acesso ao subsídio social de desemprego é obrigatório que o rendimento "per capita" do agregado familiar do desempregado seja inferior a 80% do IAS, ou seja, a 335€. Pela forma como antes era calculado o rendimento "per capita" o desempregado daquele agregado familiar tinha direito ao subsídio social de desemprego. Após a a entrada em vigor do Decreto-Lei 70/2010 este mesmo desempregado já não tem direito ao subsídio social de desemprego. O que acontece com este subsídio sucede como muitos outros apoios sociais a pessoas a viver no limiar da pobreza. Portanto, o numero de portugueses com insuficiência de recursos com direito a apoios sociais (abono de família, abono pré-natal, subsídio social de desemprego, complemento solidário de idoso, rendimento social de inserção, acção escolar, taxas moderadoras, comparticipações nos medicamentos, comparticipação nas despesas dos utentes de cuidados continuados, etc.) vai diminuir significativamente. Mas é desta forma que este governo pretende reduzir as despesas do Estado, para assim reduzir o défice orçamental.

O DECRETO-LEI Nº 72/2010: Reduz o subsídio de desemprego e determina a diminuição geral dos salários no futuro

E como tudo isto já não fosse suficiente, o governo também alterou a lei do subsídio de desemprego, ou seja, o Decreto-Lei nº 187/2007. Segundo o nº2 do artº 29 do Decreto-Lei 72/2010, que também entra em vigor em 1 de Agosto de 2010, o valor máximo do subsídio de desemprego vai baixar de 65% do salário ilíquido que o trabalhador recebia antes de ser despedido para apenas 75% desse salário líquido , ou seja, depois de deduzir o desconto para a Segurança Social (11%) e a retenção do IRS. Para além disso, o desempregado passa a ser obrigado a aceitar qualquer emprego, sob pena de perder o direito ao subsídio, desde que o salário oferecido nos primeiros 12 meses seja igual ao subsídio de desemprego mais 10%, e depois basta que seja igual ao subsídio de desemprego, que no máximo corresponde a 75% do salário liquido que o trabalhador recebia no emprego anterior (.

Portanto, e repetindo para ficar claro, a partir de 1 de Agosto de 2010, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 72/2010 não é só o subsídio de desemprego que vai diminuir (passa de 65% do salário ilíquido que o trabalhador tinha antes de ser despedido para apenas 75% desse salário liquido ), mas também o salário do desempregado em futuro emprego já que ele ficará obrigado a aceitar um emprego cujo salário seja apenas igual ao subsídio de desemprego após mais 10% nos primeiros 12 meses de desemprego, e depois desse período é obrigado a aceitar um emprego desde que o salário seja igual ao subsídio de desemprego que está receber, o qual no máximo é igual a 75% do salário liquido que recebia antes de cair no desemprego. E se não aceitar perde o direito ao subsídio de desemprego (artº 13º, artº 41, nº1, alínea a; artº 49,nº1, alínea a). É de prever que os patrões aproveitem esta disposição da lei, ou seja, esta ajuda do governo para baixar ainda mais os salários. Mas é desta forma que este governo pretende promover o emprego em Portugal, reduzindo ainda mais a qualidade do emprego e os salários.

O CARACTER RECESSIVO DO PEC E A INSENSIBILIDADE SOCIAL DESTAS MEDIDAS

O PEC:2010-2013 é um programa recessivo porque reduz a despesa e o investimento público e diminui o poder de compra da população através do congelamento dos salários e das prestações sociais, ou da sua eliminação, e da subida dos impostos (só a subida do IVA e do IRS reduz o poder de compra da população em mais de 1.260 milhões €/ano). Como se está a verificar igual corte de despesas públicas em todos os países da U.E. (mais de 200.000 milhões €), as exportações tornar-se-ão mais difíceis, e o desemprego vai continuar a aumentar. A saída de Portugal da crise torna-se assim mais difícil.

Para além de tudo isso, pelas medidas analisadas neste artigo que também constam do PEC, fica claro que ele é também um programa que revela uma profunda insensibilidade social.

Numa altura como esta é necessário que o País e também as famílias façam uma aplicação rigorosa dos seus recursos, não se endividando mais (as taxas de juro estão a aumentar), e que ninguém cruze os braços, não deixando de participar em movimentos da sociedade civil para que a politica do governo português e da UE deixe de se preocupar apenas com a redução do défice orçamental e em "agradar os mercados" e passe a se preocupar com as pessoas, em particular com as que menos têm.

Eugénio Rosa
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"... Repetiu-se o som estridente do claxon. O automóvel guinou para o lado esquerdo, ao chocar no corpo do pastor; ainda roçou nas ervas da berma em que o moço jazia; mas depressa retomou a marcha normal.
O sujeito que guiava perguntou à senhora, a seu lado:
-O menino viu?...
-Não. Escondi-lhe a carinha no meu peito. Tive tanto medo do homem...
-Está bem. Não vimos nada. Percebeste? -atalhou o sujeito.
No alto, sobre a placidez da noite, as primeiras estrelas prenunciavam bom tempo."

"Um caso sem importância" (Excerto)
Soeiro Pereira Gomes